segunda-feira, 12 de março de 2012

O MAIS ESCURO DE MIM - Capítulo 3

o que deveria renunciar? isto tudo se passou numa tarde, bem longe daqui e desse tempo.

olhos para os meus pés tentando desvendar o mistério dos meus pés, dos meus pés universais e dos meus pés profanos, os pés humanos de todos os homens e mulheres. delineio meus pés. servem eles para a fuga? quantas vezes fugi? meus dedos e suas unhas tortas, meus tornozelos, tão distantes: mando um telegrama para os meus tornozelos? por estarem eles distantes?

a verdade é que não suporto olhar para os meus pés como não suporto olhar para nada. o sol é um astro de tamanho fulgor e beleza, e me dizem que amanhã tudo estará como sempre foi. não há motivos para alimentar o medo, tudo que se vê já foi ou sempre esteve junto a nós. eu desconfio disso, porque olhei o sol, e mirei nele o meu olhar e a minha alucinação me transubstanciou, primeiro me pulverizou

eu virei o olhar, antes que virasse eu outra coisa. foi uma bobagem, talvez tenha sido a única chance de não me ser, a qual foi dada a mim que nunca me fui, que nunca me quis. assim tive que enfrentar a luta quase corporal com a alucinação que vinha de si, não do entorno, com a in-lucidez, porque fugi da alo-cidez.

meus pés estão feridos. feridos de terem bailado oito horas seguidas em um chão hexagonal de alto relevo. e eu não tenho suportado olhar para nada, outros pés estão bailando junto aos meus, que parecem mais resolvidos, pés mais confortáveis, vermelhos e pesados como pedras.

mas eu olhava para os meus tornozelos, eu olho para muitas coisas ao mesmo tempo, só não consigo pousar meu olhar sobre nada pois meu olhar acompanha minha mente. e minha mente esta distante dos meus tornozelos a uma distância indescritível, colossal, tanto que minhas pernas pareciam duas colunas cósmicas de mármore sem qualquer charme, redondas e profusas numa perspectiva cujo ponto de fuga era visível: meus pés. eu não quisera ter essas pernas, eu não às sou, eu não sou eu, eu sou o Eu Sou, por isso sou apenas assim, bailando de lá para cá.

vou te contar um segredo: um dia meus pés saíram pela estrada e caminharam para longe, e no meio do caminho uma estrela apareceu e bailou diante dos meus olhos, e essa estrela era você, e meus pés continuaram caminhando, e encontraram uma porta, e eu bati com meu pé direito na porta e ela se entreabriu, e bati com meu pé esquerdo e a porta se tornou uma pedra num muro. e eu vi que eu era que havia construído este muro entre mim e as coisas. não conte isso a ninguém; é um segredo.

e que seja apenas nosso.

como é um segredo que eu quero beijar seus seios hoje, redondos como seus olhos, castanhos e me tornar novamente um feiticeiro.

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