segunda-feira, 12 de março de 2012

O MAIS ESCURO DE MIM - Capítulo 2


quero agora tecer mais do que palavras. assim farei uma estrela de sombra.

eu me assento num canto escuro de mim mesmo. a falta de luz anestesia o instante. por um momento estou confortável como todos os bichos, sapos, rãs, pavões e outros escuros pássaros que sobrevoam o lago noturno adiante, pousando esguios como flamingos negros.

estou sempre me despedindo de tudo, e morrendo uma morte que nunca se conclui. porque penso isso? ou não penso? ou pensam-me: eu não existo neste ainda. o instante-agora é impossível, todo agora já foi e não resiste, nisto consiste a matéria corporal do tempo.

já existi um dia, mas o silêncio me fez esquecer e o silêncio é bem vindo agora, ainda que eu tente sufocá-lo com tantos encantamentos, o silêncio me encanta com seu porte supremo. a verdade é que agora eu me peguei pelo próprio pé; porque estou a tentar fugir de mim.

eu falo tanto de sombras que tudo de repente se ilumina e já não é mais. explico? não há explicação. eu tenho tecido uma nova face diante de cada porta, eu que aguardo a porta se abrir e tenho a chave que a abre, mas não há porta.

não há respostas, não há perguntas, existe apenas a chave. eu possuo o código mas não há o que decifrar, eu tenho as senhas, mas não há locais de acesso. eu quis romper o silêncio, e morri porque nem o silêncio me foi dado, nem me deixaram falar.

eu criança, querendo algo ao redor da mesa, falando qualquer coisa e sendo impedido, mais que isso, ofendido, mais que isso, destruído na minha essência como as essências outras que se vão perdendo a medida que crescemos, que aprendemos cálculo, lógica, prática e desaprendemos a fé: a fé só é impossível na infância, por isso deixai vir a mim os pequenos, é deles o reino dos céus.

hoje eu estou crescido e sou mais um número no exército dos que perderam a graça. quando era pequeno queria ser palhaço, correr no picadeiro. aqueles guizos, sininhos, tintas no rosto, enfim: queria fazer meu pai sorrir, não todos os homens, meu pai apenas. mas coisas ocorreram e veio o tempo com sua fria lâmina  adamantina e záz! cortaram-me a graça.

e como lâmina que se preze tem dois gumes perdia a graça de contar piadas e não fiz rir meu pai, e após, como decorrência direta, a graça que Deus derrama sobre o homem também foi desligada (é um eufemismo), sim eu perdi a fé ao levantar a saia de Deus. você jamais imaginaria minha doce Christie o que vi sob o manto de Deus. você, jamais adivinharia, mesmo que tivesse a suave perspicácia de uma borboleta.

cortaram-me também a língua e a embrulharam no jornal, assim falei sobre muitas notícias, e a luz voltou, ela sempre volta, e me dizem sempre da luz: que fui feito de luz, que há luz em meus dedos, luz em meus cabelos e em minhas palavras, que eu consigo levantar algumas coisas caídas no chão, mas eu sei, sim, que se elas se levantam é porque estão vivas, e eu fui mutilado, cada pedaço grita numa frequência.

eu falei de um lago, um lago alhures, um lago noturno, frio, medonho, que é meu: fui eu quem fez, e agora tenho medo do que guardei nele. sou o senhor do lago e tenho medo do meu reino. quisera que amanhecesse para que o sol secasse a água e eu visse o que tem embaixo, que é que tenho em minhas próprias profundidades.

aliás, é de profundidades que te falo Christie, por isso separei todas as fotos, rasguei todos os cartões, abri o baú e ateei-lhe fogo: tudo isso é o medo da minha profundidade, e eu tentando enganá-la falando de profundidades. arfando profundidades, jorrando-as sobre ti como a querer distraí-la, mas sem êxito. você já possui seu próprio mundo onde se esconde em suas próprias profundidades.

eu não tenho como respirar em seu mundo, porque já fui colhido pela morte do meu mundo, já estou morto e vago com a morte de braços dados. sou póstumo, mal vivo, sou eu, eu, eu

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